A jovem médica me olha fixamente deixando, sem o menor pudor, transparecer sua impotência, após haver utilizado todas as suas técnicas de abordagem. Talvez, não sei dizer ao certo, alguma pequena fração daquele que um dia fui, tenha se condoído dela. Mas, agora, é muito tarde. Mesmo sem querer, meu pensamento se volta para aquela manhã, na sala de espera do dentista, quando vi pela primeira vez, ilustrando um texto sobre antigos costumes tribais, a face daquele deus pagão, sem nome e sem origem determinada. Não sei dizer por qual motivo rasguei a página, e a escamoteei com dedos rápidos de criminoso. Em minha casa, uma parede branca estava reservada para a cópia de uma tela impressionista, pintada por um ainda obscuro gênio florentino. A partir daí, passei a dedicar minhas horas ociosas a reproduzir a gravura, ampliando-a, naquela parede. Conforme os traços iam ocupando os quadrículos, a face do ídolo ia se tornando cada vez mais nítida e assustadora. Diferentemente do tosco modelo, a figura que agora eu contemplava, mesmo ainda inacabada, passava a sensação de ter vida própria. Agora, eu estava totalmente envolvido com minha obra. Num crescendo, eu passava cada vez mais tempo com ela, fazendo menos importantes todas as outras obrigações dos meus dias. De repente, manhãs e noites passaram a se misturar até que, finalmente, estava terminado. Era impossível deixar de ver que, à minha frente, estava uma figura viva; com alma. Nos olhos, a maldade estava ali retratada de tal forma, que poderia ser tocada. Um cansaço imenso tomou conta de mim. Ali mesmo eu me deitei e adormeci. Repentinamente, uma selva diferente de tudo quanto eu já havia visto, vibrante de cores e de sons, me cercava e oprimia. Prisioneiro dentro dos olhos do ídolo, eu via um quadro de sofrimentos e torturas indescritíveis, que eu podia sentir em meu corpo. Hipnotizado pelo ritmo ensurdecedor dos tambores, acompanhei o suplício de homens, mulheres e crianças, comandado pelos sacerdotes da tribo, expostos a toda sorte de abusos e agressões, como tributo ao ídolo. E, pior de tudo, eu podia perceber de alguma forma a satisfação daquela criatura. Ao acordar, não sei quantos dias depois, e ainda trêmulo pelas emoções vividas, senti um medo terrível. Eu soube com a maior clareza possível, que estava dando vida àquela forma demoníaca. Se ficasse em minha casa, seria por ele aprisionado, passando a ver e a sentir através dos seus olhos, toda a imensa maldade que o alimentava. Como derradeiro ato de coragem, abandonei tudo. Meus dias e minhas passaram a se resumir em uma eterna fuga. Até que vim parar aqui, neste manicômio, conhecendo, depois de tanto tempo, a paz que já considerava perdida. Uns após outros, médicos passaram a me examinar, buscando arrancar alguma palavra ou fato passado, tentando ajudar-me a voltar a ser o que um dia eu fui. Pelo bem de todos nós, isso não pode acontecer.
ALGUMAS INFORMAÇÕES
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- Em Araruama desde 2003, colaborou como redator nos jornais A VOZ DE ARARUAMA, VERDADE, JORNAL ROTA DO SOL e CONTEÚDO. Escreveu artigos para os jornais HORA CERTA, REVISTA REALCE e JORNAL DA CIDADE, e apresentou na Rádio Mar Aberto, o programa de entrevistas FRENTE A FRENTE. Atualmente escreve para o Carapeba e Correio da Cidadania
segunda-feira, 29 de março de 2010
A FACE DO ÍDOLO
OS 100 CONTOS DE RÉIS
A jovem médica me olha fixamente deixando, sem o menor pudor, transparecer sua impotência, após haver utilizado todas as suas técnicas de abordagem. Talvez, não sei dizer ao certo, alguma pequena fração daquele que um dia fui, tenha se condoído dela. Mas, agora, é muito tarde. Mesmo sem querer, meu pensamento se volta para aquela manhã, na sala de espera do dentista, quando vi pela primeira vez, ilustrando um texto sobre antigos costumes tribais, a face daquele deus pagão, sem nome e sem origem determinada. Não sei dizer por qual motivo rasguei a página, e a escamoteei com dedos rápidos de criminoso. Em minha casa, uma parede branca estava reservada para a cópia de uma tela impressionista, pintada por um ainda obscuro gênio florentino. A partir daí, passei a dedicar minhas horas ociosas a reproduzir a gravura, ampliando-a, naquela parede. Conforme os traços iam ocupando os quadrículos, a face do ídolo ia se tornando cada vez mais nítida e assustadora. Diferentemente do tosco modelo, a figura que agora eu contemplava, mesmo ainda inacabada, passava a sensação de ter vida própria. Agora, eu estava totalmente envolvido com minha obra. Num crescendo, eu passava cada vez mais tempo com ela, fazendo menos importantes todas as outras obrigações dos meus dias. De repente, manhãs e noites passaram a se misturar até que, finalmente, estava terminado. Era impossível deixar de ver que, à minha frente, estava uma figura viva; com alma. Nos olhos, a maldade estava ali retratada de tal forma, que poderia ser tocada. Um cansaço imenso tomou conta de mim. Ali mesmo eu me deitei e adormeci. Repentinamente, uma selva diferente de tudo quanto eu já havia visto, vibrante de cores e de sons, me cercava e oprimia. Prisioneiro dentro dos olhos do ídolo, eu via um quadro de sofrimentos e torturas indescritíveis, que eu podia sentir em meu corpo. Hipnotizado pelo ritmo ensurdecedor dos tambores, acompanhei o suplício de homens, mulheres e crianças, comandado pelos sacerdotes da tribo, expostos a toda sorte de abusos e agressões, como tributo ao ídolo. E, pior de tudo, eu podia perceber de alguma forma a satisfação daquela criatura. Ao acordar, não sei quantos dias depois, e ainda trêmulo pelas emoções vividas, senti um medo terrível. Eu soube com a maior clareza possível, que estava dando vida àquela forma demoníaca. Se ficasse em minha casa, seria por ele aprisionado, passando a ver e a sentir através dos seus olhos, toda a imensa maldade que o alimentava. Como derradeiro ato de coragem, abandonei tudo. Meus dias e minhas passaram a se resumir em uma eterna fuga. Até que vim parar aqui, neste manicômio, conhecendo, depois de tanto tempo, a paz que já considerava perdida. Uns após outros, médicos passaram a me examinar, buscando arrancar alguma palavra ou fato passado, tentando ajudar-me a voltar a ser o que um dia eu fui. Pelo bem de todos nós, isso não pode acontecer.
A jovem médica me olha fixamente deixando, sem o menor pudor, transparecer sua impotência, após haver utilizado todas as suas técnicas de abordagem. Talvez, não sei dizer ao certo, alguma pequena fração daquele que um dia fui, tenha se condoído dela. Mas, agora, é muito tarde. Mesmo sem querer, meu pensamento se volta para aquela manhã, na sala de espera do dentista, quando vi pela primeira vez, ilustrando um texto sobre antigos costumes tribais, a face daquele deus pagão, sem nome e sem origem determinada. Não sei dizer por qual motivo rasguei a página, e a escamoteei com dedos rápidos de criminoso. Em minha casa, uma parede branca estava reservada para a cópia de uma tela impressionista, pintada por um ainda obscuro gênio florentino. A partir daí, passei a dedicar minhas horas ociosas a reproduzir a gravura, ampliando-a, naquela parede. Conforme os traços iam ocupando os quadrículos, a face do ídolo ia se tornando cada vez mais nítida e assustadora. Diferentemente do tosco modelo, a figura que agora eu contemplava, mesmo ainda inacabada, passava a sensação de ter vida própria. Agora, eu estava totalmente envolvido com minha obra. Num crescendo, eu passava cada vez mais tempo com ela, fazendo menos importantes todas as outras obrigações dos meus dias. De repente, manhãs e noites passaram a se misturar até que, finalmente, estava terminado. Era impossível deixar de ver que, à minha frente, estava uma figura viva; com alma. Nos olhos, a maldade estava ali retratada de tal forma, que poderia ser tocada. Um cansaço imenso tomou conta de mim. Ali mesmo eu me deitei e adormeci. Repentinamente, uma selva diferente de tudo quanto eu já havia visto, vibrante de cores e de sons, me cercava e oprimia. Prisioneiro dentro dos olhos do ídolo, eu via um quadro de sofrimentos e torturas indescritíveis, que eu podia sentir em meu corpo. Hipnotizado pelo ritmo ensurdecedor dos tambores, acompanhei o suplício de homens, mulheres e crianças, comandado pelos sacerdotes da tribo, expostos a toda sorte de abusos e agressões, como tributo ao ídolo. E, pior de tudo, eu podia perceber de alguma forma a satisfação daquela criatura. Ao acordar, não sei quantos dias depois, e ainda trêmulo pelas emoções vividas, senti um medo terrível. Eu soube com a maior clareza possível, que estava dando vida àquela forma demoníaca. Se ficasse em minha casa, seria por ele aprisionado, passando a ver e a sentir através dos seus olhos, toda a imensa maldade que o alimentava. Como derradeiro ato de coragem, abandonei tudo. Meus dias e minhas passaram a se resumir em uma eterna fuga. Até que vim parar aqui, neste manicômio, conhecendo, depois de tanto tempo, a paz que já considerava perdida. Uns após outros, médicos passaram a me examinar, buscando arrancar alguma palavra ou fato passado, tentando ajudar-me a voltar a ser o que um dia eu fui. Pelo bem de todos nós, isso não pode acontecer.
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